No Brasil, o futebol se tornou em esporte nacional, não apenas por ser o mais praticado, mas, principalmente, porque durante as Copas do Mundo uma série de representações sobre a nação e o povo brasileiro se legitimam a partir do futebol. Nesta época, vive-se a experiência da identificação nacional, onde poucas pessoas conseguem escapar. Criam-se e recriam-se várias concepções de Brasil, bem como de alguns heróis e vilões.
Foi durante os preparativos dos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936 que se notou mais claramente uma participação efetiva do Estado buscando o controle dos esportes.
A partir das Olimpíadas, ocorreu uma contínua e organizada intervenção do Estado nos esportes. Interferiu na polêmica no futebol entre profissionais e amadores, ajudando a selar a paz entre as entidades em 20 de julho de 1937. Ajudou o governo municipal de São Paulo na construção do Estádio do Pacaembu. E, em 1938, participou ativamente dos preparativos para a Copa do Mundo de Futebol a ser disputada na França prometendo, inclusive, “casa própria para os craques, o prêmio oferecido pelo chefe da nação se o Brasil levantar o campeonato mundial”. Antes de embarcar, Getúlio Vargas fez questão de receber a seleção e recomendou aos jogadores que voltassem como campeões mundiais, pois, o título, seria de suma importância para o futuro do país.
Para Eric Hobsbawm, as nações e a identidade nacional são fenômenos duais, construídos basicamente pelo alto, mas que, no entanto, “não podem ser compreendidas sem ser analisadas de baixo, ou seja, em termos das suposições, esperanças, necessidades, aspirações e interesses das pessoas comuns, as quais não são necessariamente nacionais e menos ainda nacionalistas”. Ele ainda acrescenta que “essa visão de baixo, isto é, a nação vista não por governos, porta-vozes ou ativistas de movimentos nacionalistas (ou não nacionalistas), mas sim pelas pessoas comuns que são o objeto de sua ação e propaganda, é extremamente difícil de ser descoberta”.
Mas como poderemos detectar iniciativas e contribuições opostas que procuraram resistir ou estabelecer limites a uma ideologia dominante? No caso do futebol, como os trabalhadores receberam a ideologia da identidade nacional, via futebol? Eles aceitaram passivamente as idealizações construídas pelo Estado como se fossem “tábulas rasas”? Ou procuravam construir uma resposta alternativa que redimensionava, recriava e modificava a hegemonia verde-amarela?
Uma forma de suplantar esta dificuldade estaria no estudo dos mitos populares daquele período ligados ao futebol, procurando saber o que eles representavam para determinados grupos sociais.
E o que podemos constatar é que os mitos criados pelo futebol nem sempre representam o que as classes dominantes e o governo gostariam que representassem. Para restringirmos a um exemplo, na década de 1930, o jogador mais popular era Leônidas da Silva, o Diamante Negro. Para alguns, era mais popular que o próprio Getúlio Vargas. Durante a Copa do Mundo de 1938, realizado na França, Leônidas se tornou no principal jogador da seleção. Mais do que isso, ele se tornou o jogador de maior identificação popular.
De origem humilde, negro, começando a carreira num time de subúrbio, Leônidas tinha tudo para ser o protótipo do homem brasileiro idealizado pelo Estado Novo. No entanto, a realidade seria outra. Acusado de não respeitar um acordo com o América FC assinado por ele em três ocasiões diferentes, acusado de ter roubado um colar de contas numa excursão de seu time à São Paulo, além de inúmeras vezes ter sido acusado de mal profissional porque não gostava de treinar ou porque fingia que estava machucado para ganhar mais dinheiro fazendo palestras ou inaugurando lojas; Leônidas não seria a figura mais plausível para a representação do ideal do “homem novo”. O que Leônidas representava era uma ética totalmente diferente, muito mais próxima da ética da malandragem, tão difundida na mesma época.
Se compararmos o perfil de Leônidas com o de outro grande jogador da época, Domingos da Guias, se traçará um quadro contrastante. De origem humilde e negro como Leônidas, era também educado, trabalhador – muito trabalhador – e discreto. Em tudo se diferenciando do primeiro, um gentleman negro. Um exemplo perfeito do que o Estado Novo pretendia idealizar. No entanto, apesar de todo o respeito que um popular tinha por Domingos, a sua simpatia estava direcionada para Leônidas. Era Leônidas que foi marginalizado como eles. Era Leônidas que era chamado de negro e moleque quando fazia alguma coisa “errada”. Era Leônidas que, apesar de dar a vitória ao Flamengo, era quem ganhava menos. Era Leônidas que freqüentemente se sentava no Café Rio Branco, em pleno centro do Rio do Janeiro, para ficar em exposição permanente possibilitando uma aproximação do torcedor humilde. Na hora de escolher qual o jogador preferido, o torcedor não tinha dúvidas: era Leônidas.
Enquadrar Leônidas como mito não se deve a uma simples decisão individual, mas porque possuía características que correspondia a algum tipo de anseio preexistente. Leônidas simbolizava toda uma coletividade que se identificava com ele, transformando-o num modelo exemplar de comportamento para a conduta dos homens, conferindo, por isso mesmo, significado e valor as suas existências.
A identidade nacional não exime as diferenças. Se o futebol foi progressivamente utilizado na década de 1930 com fins de propagar a ideologia estadonovista de uma nação de diferentes raças e classes sociais unida em torno da grandeza nacional, os trabalhadores devolviam essa concepção de identidade nacional de uma forma diversa, com a escolha de um jogador que representava uma ética mais próxima do mundo do lazer que do mundo do trabalho e da disciplina defendida pelos governantes.