Desde o início do século XX, os governantes procuraram se aproximar do fenômeno esportivo. Durante o Estado Novo controlar essa prática esportiva passou a ser uma das prioridades dos grupos que ocupavam o poder. Em 1950, a inauguração do Maracanã estava inserida num projeto político que procurava construir uma imagem do Brasil como país empreendedor, vitorioso e bem-sucedido. Em 1958, 1962 e 1970, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Emílio Garrastazu Médici, respectivamente, participaram ativamente das homenagens prestadas aos jogadores campeões mundiais. Nesses anos, a intercessão entre futebol e interesses políticos se manteve através da construção de discursos que procuravam associar o futebol aos projetos dos grupos que estavam no poder.
Os esportes sempre foram prodigiosos em produzir heróis. Entre eles, o futebol se destaca como o mais popular. E o que podemos constatar é que os mitos criados pelo futebol nem sempre representaram o que o Estado e até a própria imprensa gostariam. Entre 1958 e 1970, devido à excepcionalidade, à predestinação, à identificação e à provação, dois heróis se tornaram jogadores-símbolo de uma geração, numa espécie de síntese das diversas representações de identidade nacional que coexistiam num mesmo contexto. Estamos falando dos mitos de Pelé e de Garrincha.
Pelé simbolizou como ninguém o ideal de brasileiro forjado na segunda metade do século XX. Num país com um secular passado escravista, com um racismo não declarado, hipócrita e muitas vezes subestimado e uma população negra em condições econômicas bem inferiores à média da população nacional, o surgimento de um herói negro, que se orgulhava de ser negro e que se destacava perante todos os outros atletas – brasileiros ou não, negros ou não –, representou uma verdadeira abolição da escravatura social.
Ao contrário do “Rei”, o “Anjo de Pernas Tortas” representava um futebol totalmente indisciplinado a ponto de driblar todo um time adversário, sem objetivar o gol. Fora dos gramados, Mané namorava, caçava passarinhos, frequentava botecos e jogava “pelada”. Ele ainda era admirado pela solidariedade com que tratavam os seus “iguais”, por não ter abandonado os amigos, continuar morando ou visitando o lugar onde foi criado, ser próximo dos torcedores e, principalmente, manter um estilo de vida associado aos símbolos que são considerados de uma cultura plebéia. Os populares associavam o futebol e o “Brasil” ao lado lúdico da vida. Aqui o futebol não é um esporte, é um jogo; não é praticado por atletas, mas por jogadores; não é um trabalho de carteira assinada, mas uma diversão.
Para grande parte da imprensa, como os jornalistas Mário Filho e Thomaz Mazzoni, o futebol fazia parte de um processo de disciplinamento dos instintos mais selvagens dos brasileiros, sem que com isso ele perdesse o que tinha de original, de autêntico e de essencialmente nacional.
Para esses jornalistas quem melhor representava, não a nação real, mas a nação que se pretendia construir, era Pelé. Era em Pelé que viam todas as características consideradas ideais em um jogador que se pretendia símbolo de uma nação: era habilidoso, possuía um estilo brasileiro de jogar, tinha origem pobre, era negro e, principalmente, era trabalhador e disciplinado.
Em 1962, na Copa do Mundo do Chile, o “Rei” se contundiu. Enquanto isso, Mané driblava. Driblava e ganhava o título de bicampeão mundial. Se Pelé era o “Rei”, Garrincha era agora o “Rei dos Reis”, título colocado na faixa estendida sobre a sede do Botafogo.
Com o tricampeonato e com o enquadramento da figura-chave “Pelé”, o futebol parecia ter realizado a tão almejada visão de sociedade brasileira defendida alguns anos antes por Mário Filho: unir a “brasilidade” com a “disciplina”.
Se não dava para o Estado e a imprensa enquadrar o mito de Garrincha, então a solução foi desenvolver um processo de esquecimento paulatino. Passaram a destacar não o seu lado lúdico e solidário, mas o lado sombrio, decadente, cheio de escândalos pessoais.
Dessa forma, Garrincha ficou associado a um modelo negativo, um exemplo a não ser seguido, uma pessoa que negou todas as características mais preciosas na formação de um brasileiro: o seu controle pessoal, a sua disciplina, o seu apreço ao trabalho e a sua obediência aos valores da sociedade.
Tentaram silenciar o mito de Garrincha, ou associá-lo a valores carregados de negatividade. Mas, apesar das tentativas, os trabalhadores não o esqueceram. Em 20 de janeiro de 1983, depois de três casamentos e treze filhos, Garrincha morria num hospital do Rio de Janeiro, vítima de extensas lesões no fígado e no pâncreas causadas pelo consumo excessivo de álcool. Quando souberam da morte, foram os populares os primeiros a prestar homenagens ao herói. Um herói que tinha vivido como eles, que tinha sofrido os mesmos preconceitos e que apreciava os mesmos valores associados ao lado bom da vida, ao lado bom de ser brasileiro.
Finalmente, o enterro simbólico: o herói voltando a sua gente, voltando a sua terra. A sepultura sendo escavada pelas pessoas humildes, com as próprias mãos. Era uma homenagem que o simples trabalhador prestava àquele que havia sido um modelo exemplar de brasileiro.
Portanto, através da trajetória de dois mitos populares ligados ao futebol, podemos constatar que a nação é sempre uma construção múltipla e variada. Ela é um símbolo com seus significados múltiplos, disputados por diferentes grupos que se organizam para se apoderar do sentido mais apropriado para seu grupo e seus efeitos legitimadores. Os projetos de nação estão sempre no plural. Por mais que um determinado grupo detenha uma proeminência econômica e política sobre os outros, nunca será o único a dar uma resposta a seus questionamentos mais vitais. Outros atores sociais também forjarão significações diversas sobre o que eles consideram uma nação, um povo ou sobre qualquer outro assunto.