Introdução
Robôs conta a história de Rodney Lataria, um aspirante a inventor, que viaja a Robópolis para conhecer seu ídolo, o Grande Soldador. Pelo caminho ele faz muitos amigos e juntos acabam encontrando o malvado Dom Aço. Sob a orientação de sua mãe, Dom Aço tomou a empresa do Grande Soldador e decidiu negar acesso aos outros robôs a peças necessárias para sua manutenção.
Robôs parece ser mais um inocente filme infantil que, com um personagem heróico, irá resolver os problemas que lhe são apresentados ao longo da história.
Aos olhos infantis, Robôs é uma fascinante viagem por um mundo mágico, colorido, com personagens bem construídos, divertidos e alucinantes doses de ação. Mas é quando se pensa um pouco mais sobre seu roteiro e o que está nas entrelinhas desse roteiro, que as questões relacionadas às representações corporais emergem.
Ao analisar o conteúdo de alguns trechos do filme, tanto as imagens, quanto as falas dos personagens, é possível pensar em questões atuais como a cultura de consumo corporal, tendo assim uma noção mais crítica sobre o que estamos apresentando às nossas crianças e que tipo de adolescentes e adultos poderemos produzir com esses tipo de consumo cinematográfico.
O primeiro ponto que proponho analisar é como o filme propõe que os robôs cresçam: para "fazer aniversário" e ficar mais velho é necessário que se faça a troca de peças. Mas, alguns robôs não possuem dinheiro para essa troca e utilizam, então, peças recondicionadas ou aproveitam peças de algum outro membro da família. Essa segunda opção é o que acontece com Rodney Lataria, que recebe de aniversário de 12 anos peças que eram da sua prima Verônica.
Aqui cabe uma primeira reflexão sobre que imagem sobre o corpo nos é apresentada. Fica claro que as classes menos favorecidas economicamente não têm acesso a um corpo (peças) semelhante às que possuem as classes que podem comprar peças novas para construírem um corpo aceito socialmente. Se na sociedade dos robôs as diferenças corporais são traduzidas pela "qualidade" das peças, em nossa sociedade, um corpo aceito socialmente irá depender do ambiente social que ele circula. Cabelos lisos, corpo enxuto, malhado e cirurgicamente contornado, são características que marcam um corpo tipo como belo pela cultura de massa. Esses corpos são veiculados na mídia de um modo geral (revistas, televisão, etc) e nos levam a crer que há somente uma possibilidade de se ter um "corpo bonito", ou seja, só podemos aceitar nosso próprio corpo se ele estiver dentro dos padrões atuais de beleza.
O corpo aparece como uma possibilidade de "mercadoria" a ser constituída e moldada conforme, também, as influências que os indivíduos recebem do meio. Representado no filme por peças de robôs, o corpo ocupa lugar de destaque na história contada, mesmo que em um primeiro momento essa discussão acerca do corpo pareça ser uma mensagem subliminar contida nele, visto que o heroísmo de Rodney é o eixo central do filme.
E que modelo corporal é idealizado pelo filme? Pelas palavras de Dom Aço seria a de um corpo sempre novo. Com a possibilidade de troca de qualquer peça/parte que possua uma versão mais moderna e que estará a nossa disposição para consumo imediato. Essa é a impressão de quem assiste ao filme até a fala citada. Mas ao longo da história, fatos, imagens e falas, nos levam a crer que a opinião expressa pode ser relativizada.
Na loja de ferragens, onde os robôs realizam seus consertos, a partir da proposta de Dom Aço de somente produzir peças novas, há uma divisão de setores.
Com os robôs que vão até a loja à procura de peças para reposição ao fundo, a imagem limpa e ofuscante faz um grande contraste com o setor da loja destinado as peças usadas, onde o ambiente é poluído, empoeirado e extremamente bagunçado. Ao falarem que não estão interessados em peças novas, os robôs marginalizados são taxados de fora de linha e o vendedor argumenta com eles que não existe mais peças ä disposição para eles que não sejam as novas, nas palavras do vendedor: Desculpe, mas para você é peça nova ou ferro velho.
No filme, os robôs não se conformaram com a parada na fabricação de peças para reposição, pois, para eles o uso de peças novas não adquire significado cultural. Ou seja, mesmo com a possibilidade (ou não, dependendo dos recursos financeiros de cada um) de se tornarem mais bonitos e modernos eles preferem continuar usando peças recondicionadas.
Obviamente isso reflete a posição de uma parcela da sociedade, a oferta estava lançada - o uso de peças novas - e alguns adotariam a nova moda e outros não, seja por falta de significado ou por falta de dinheiro. De uma maneira simples e direta, o filme ilustra bem o que acontece atualmente em nossas vidas. Novas possibilidades de melhora corporal são lançadas, uma parcela da população as consome, outra não, pelos mesmos motivos relacionados acima.
Compreendida toda a história, podemos perceber a crítica que o filme tece contra o mundo de hoje. O tema é consumismo desenfreado, que descarta sem dó nem piedade tudo aquilo que é considerado ligeiramente quebrado, sem função ou simplesmente fora de moda. Incluindo o que é possível ser consertado. Não ter (ser) o último modelo é estar fora da vida. E, é claro que, sob este ponto de vista, o filme não está falando de meros robôs, mas sim de seres humanos, de velhos, deficientes, minorias e excluídos em geral. Os motivos comerciais justificam a instauração de uma espécie de ditadura da beleza, que exige que os novos robôs sejam brilhantes e reluzentes, e que ninguém tenha direito a peças de reposição. É o ápice de todos os sonhos de consumo: gente descartável, fora de linha.