O futebol é o esporte que desperta maior entusiasmo no mundo. O dinamismo das partidas, a facilidade em praticá-lo – pode-se jogar “bola” com qualquer objeto que deslize no chão –, e a relativa imprevisibilidade dos resultados são alguns dos elementos que contribuíram para sua grande popularidade. Contudo, assim como qualquer atividade, também o futebol foi apropriado e adequado ao modo de produção capitalista, objetivado em características como a reprodução da lógica do trabalho alienado, a mercantilização e a elitização da prática esportiva e o embrutecimento dos sentidos e valores, na medida em que o valor estético é posto em eclipse pelo valor de troca da mercadoria futebol.
Compreendemos que o futebol é uma prática social que se transformou num patrimônio cultural da humanidade, fruto do conhecimento e experiência das gerações anteriores. Portanto, ela é dotada de sentidos que foram ao longo da história construídos e formaram uma materialidade corpórea própria, ou ainda, ensejaram uma cultura corporal que possibilita momentos de catarse coletiva, fazendo com que os indivíduos não vivenciem o mundo de maneira sempre atrelada ao pragmatismo e imediatismo da vida cotidiana. E justamente em oposição aos valores e concepção de mundo difundida pelo capital, é que foi organizada a I Copa América Alternativa (CAA).
A ideia de realizar a CAA surgiu de experiências difundidas na Europa, onde são realizados eventos que reúnem equipes de futebol que discordam dos ditames do futebol-mercadoria, que vão de encontro às práticas fascistas, racistas, machistas e/ou homofóbicas e que decidiram reagir a essa expropriação comercial das práticas culturais. Esses torneios de futebol, inclusive a organização a cada dois anos da Copa do Mundo Alternativa, promovem, ao menos, outro ponto de vista para se vivenciar o esporte, organizado a partir das iniciativas individuais e coletivas dos próprios jogadores, sem que haja preocupações com ações de marketing e propaganda, vendas e lucros muito menos um monopólio de grandes marcas que se revezam como patrocinadores dos megaeventos esportivos. E foi a partir da experiência de jogar a Copa do Mundo em 2010, na cidade de Yorkshire, Inglaterra, que a equipe paulista do Autônomos & Autônomas F.C., em associação com o CSAD Che Guevara – time argentino da cidade de Jesus Maria – se juntaram para organizar a I Copa América Alternativa em janeiro de 2012. Ao tomarmos conhecimento da convocatória do evento, ainda em meados do ano de 2011, decidimos participar dessa empreitada.
A confiança que nos fez resolutos em montar um time para jogar futebol num outro país se originou ainda em meados da década de 2000, quando alguns amigos entenderam que seria importante a realização de um evento que reunisse os antigos e atuais companheiros de vida, a maioria professores e estudantes de Educação Física, militantes do movimento estudantil na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Quase que espontaneamente, o evento, realizado em freqüência semestral, ganhou um nome: “Pelada da Esquerda”. Com a divulgação da convocação da I Copa América Alternativa, o grupo de amigos se expandiu, ao juntar forças com companheiros do Arquivo Nacional, fruto da articulação da luta dos servidores públicos federais no Rio de Janeiro, principalmente nas greves do Ministério da Cultura e do próprio Arquivo Nacional. Assim, esse grupo decidiu transformar a reunião semestral numa equipe de futebol para se fazer presente na Argentina.
Os integrantes do “Pelada da Esquerda” compartilham a compreensão de que é preciso desenvolver uma prática esportiva distinta do modelo hegemônico, difundido para a maioria da sociedade, marcado por um espírito competitivo e destrutivo das relações humanas, em que o prazer e a livre fruição do esporte são minimizados em nome de valores egoístas; também criticam o caráter mercadológico e reificado, que tem no consumo de produtos esportivos, baseado em valores de troca e fetiches de modas fugazes, o seu objetivo final, fator que não atende a contento os seus praticantes, que muitas vezes nem consomem os nutrientes necessários para uma prática esportiva saudável; e reivindicam que o esporte e o lazer sejam fomentados como política de Estado em caráter público, gratuito, universal, compreendidos como componentes para a formação integral do ser humano.
Nossa expectativa era em encontrar um ambiente de fraternidade, companheirismo e coletividade, em que os ideais defendidos pelo patrono da equipe anfitriã, Che Guevara, se materializassem em práticas diferenciadas no evento. Foi consenso entre os integrantes da equipe de que o evento foi marcado por uma disposição dos participantes em promover relações humanas mais harmônicas e solidárias, fato que se confirmou durante as partidas. Além disso, foram louváveis: a tentativa de que todas as equipes jogassem uma quantidade semelhante de partidas; a possibilidade de realizar substituições a qualquer momento, permitindo que todos os jogadores da equipe participassem durante tempo semelhante; e a realização de alguns jogos que contaram com a presença simultânea de homens e mulheres.
Realizamos um balanço muito positivo – não tanto pelos nossos resultados dos jogos – de nossa participação na I CAA. Certamente vivenciamos uma experiência a ser relatada, compartilhada e difundida entre nossos alunos nas escolas onde trabalhamos e entre nossos amigos nas “Peladas” aqui no Brasil. Enfrentamos adversários da Argentina, Chile, Lituânia e Inglaterra, conseguimos uma vitória nos pênaltis contra os camaradas do Easton Cowboys e pretendemos organizar um confronto com o Autônomos & Autônomas FC, equipe vencedora da Copa América, denominado Recopa Alternativa. Além disso, é nossa intenção participar da próxima edição da Copa América, nos encontrando novamente com praticantes do futebol, que estejam presentes nas lutas contra quaisquer injustiças cometidas contra quaisquer pessoas em qualquer parte do mundo, vislumbrando e acumulando forças para a construção de um novo modelo de sociedade, para além do capital!